Bordiga e o destino da espécie

Jacques Camatte

Novembro de 2020


Origem: prefácio de Camatte escrito em 2020 para “A Estrutura Econômica e Social da Rússia Hoje”, de Amadeo Bordiga.

Fonte: Medium de @miguelarthurbdemoraes.

Fonte para a tradução: Bordiga y el destino de la especie, Vamos Hacia la Vida.

Tradução: Miguel Arthur.

HTML: Lucas Schweppenstette.

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Nota do tradutor

Em um de seus últimos e mais fascinantes textos, feito inicialmente como prefácio, Jacques Camatte disserta sobre a centralidade da transformação da relação humanidade-natureza no processo de emancipação das relações de despotismo do capital. O autor faz isso a partir de uma leitura crítica de Bordiga, promovendo um retorno aos seus textos e escritos ecológicos, mergulhando em uma de suas facetas mais pioneiras e pouco conhecidas. De modo geral, traduzi esse texto pois, além de apresentar um lado singular da produção teórica de Amadeo Bordiga, considero que Camatte traz reflexões de caráter essencial para as lutas atuais pelo comunismo, pela superação de todo o estado de coisas existente e sua urgência para a salvação dos humanos e não-humanos da carruagem do progresso e seu extermínio. A destruição do capital se impôe, mais do que nunca, como uma necessidade universal de sobrevivência. Bom texto!

Em meu prefácio de 1974 para “A Estrutura Econômica e Social da Rússia Hoje”, de Amadeo Bordiga, apontei a importância deste estudo em si e em relação tanto com o marxismo como com a teoria do proletariado. O mérito desta última foi “ser capaz de manter o polo do futuro, o comunismo, mesmo que, na atualidade, o concebamos de forma diferente”. Desde então, houve a queda do Muro de Berlim, que pôs fim à dominação soviética sobre os países da Europa oriental e levou à dissolução da União Soviética, sem intervenção proletária no plano das classes. Além do mais, a tão esperada admissão de Bordiga (da natureza capitalista da URSS) não ocorreu realmente. A única coisa que concordava com a perspectiva bordiguista era que estes acontecimentos estavam, em última análise, relacionados com o futuro do mercado mundial. Citarei em particular um acontecimento que naquela época passou desapercebido, nomeadamente, a intervenção de países asiáticos como Singapura e Hong Kong que minaram completamente as exportações industriais da Alemanha Oriental e Checoslováquia, que exportavam diversos produtos, tais como câmeras e outros produtos eletrônicos de consumo de primeira geração, a preços baixos. A União Soviética não tinha uma solução econômica para tal desastre, o que levou à desintegração do bloco oriental.

Mais importante ainda, foi precisamente na década de 1970 que se impôs o fim do processo revolucionário. Na década de 1980, o proletariado como classe foi dissolvido e, atualmente, é o capital como tal que está desaparecendo. Está sendo substituído pela autonomização de sua forma, que corresponde ao estabelecimento da virtualidade(1).

Em consequência, poderia parecer que a obra de A. Bordiga já não tem nenhuma importância para nosso futuro. No entanto, se nos aproximarmos do estudo da questão russa não só em si, mas também em relação ao desenvolvimento do capital no Ocidente, as coisas parecem diferentes. No início dos anos 50, houve um debate internacional sobre se a URSS era ou não socialista. Alguns teóricos argumentavam que não era, mas que estava construindo o socialismo. A. Bordiga estava de acordo com este diagnóstico, mas adicionou: significa que se está desenvolvendo o capitalismo, a base sobre a qual o socialismo pode se desenvolver. Generalizando com respeito ao Ocidente, afirmou: muito foi construído aqui, deve ser destruído. Isto era totalmente coerente com sua declaração sobre a possibilidade do socialismo desde 1948. Isto o levou a estabelecer a possibilidade de um plano de medidas a tomar imediatamente depois da tomada do poder (reunião do partido em Forli em 1952), onde se estipulava, entre outras coisas:

“1. «Desinvestimento de capitais», ou seja, atribuição de uma parte muito menor do produto para bens instrumentais e não de consumo.

2. «Aumento dos custos de produção» para poder dar, enquanto subsistem o salário, o mercado e a moeda, pagamentos mais altos por menos tempo de trabalho.

3. «Redução drástica da jornada de trabalho» pela metade das horas atuais pelo menos, absorvendo o desemprego e as atividades antissociais.

4. Uma vez reduzido o volume da produção com um plano de «subprodução» que a concentre nas áreas mais necessárias, «controle autoritário do consumo», combatendo a moda publicitária do consumo inútil, nocivo e de luxo, e abolindo à força atividades destinadas à propaganda de uma mentalidade reacionária.

5. Rápida «ruptura dos limites da empresa», em que as decisões sobre a produção não são atribuídas à força de trabalho, mas o novo plano de consumo determina o que deve ser produzido.

6. «Rápida abolição da seguridade social» de tipo comercial, para substituí-la pela alimentação social dos não trabalhadores a partir de um mínimo social.

7. «Parar a construção» de casas e espaços de trabalho ao redor de grandes cidades, e mesmo pequenas, como ponto de partida para avançar para uma distribuição uniforme da população no campo. Redução do congestionamento, da velocidade e do volume de tráfego proibindo a circulação inútil.

8. «Luta determinada contra a especialização» profissional e a divisão social do trabalho através da abolição de carreiras e títulos acadêmicos.

9. Medidas imediatas óbvias, mais próximas das políticas, para submeter ao Estado comunista a escola, a imprensa, todos os meios de comunicação, divulgação, informação e rede de espetáculos e entretenimento.”

Pode-se dizer que, ao propor estas medidas, Bordiga iniciava uma dinâmica que chamei de inversão, ou seja, isto é, “o estabelecimento de um devir contrário ao que se tem realizado até hoje”(2). Esta afirmação é ainda mais justificada em quanto ao mesmo tempo (no início dos anos 50) Bordiga confrontou, com grande magnitude, a questão da relação entre a espécie humana e a natureza. Por exemplo: “A Espécie Humana e a Crosta Terrestre” (1952), onde se aborda a questão da superpopulação; e “Espaço vs. Cimento” (1953), que destaca a imensa mineralização da natureza. Isto levanta claramente a questão do futuro da espécie.

Por conseguinte: fundamentalmente, a espécie não deve tomar o caminho do progresso, mas o da regressão, e não deve buscar na ciência o caminho da salvação, já que a ciência se converteu, na verdade, em um instrumento de repressão e justificação deste mundo (1964).

A inversão não diz respeito apenas à espécie como tal, mas também ao comportamento dos indivíduos. Nos anos 60, se generalizou a ideia de que não era necessário esperar a revolução para mudar e permitir assim o desenvolvimento do comunismo, que seus partidários deviam alcançar, inclusive antes da revolução, um comportamento compatível com esta. Daí a afirmação central que concerne sobretudo a membros do partido(3): é preciso se comportar como se a revolução comunista fosse um fato, e o partido, cada vez mais pensado como partido-comunidade, é a prefiguração da sociedade comunista. A dinâmica de se comportar “como se a revolução já tivesse acontecido” tem como objetivo a não dependência deste mundo. Em outras palavras, o que prevalece não é a luta (não negligenciada), e, portanto, a inimizade, mas a tentativa de encontrar outra afirmação dos homens e mulheres e, por conseguinte, da espécie.

Na atualidade, diversas crises se misturam com o fenômeno da pandemia de coronavírus cujas causas fundamentalmente se remontam à época da ruptura da continuidade com a natureza — dentro da espécie —, à sua degeneração vinculada à saída da natureza, com a implantação de uma inimizade que leva em seu interior à regressão da solidariedade — da afetividade concomitante ao isolamento cada vez mais intenso entre os indivíduos —, fazendo-os vulneráveis a agentes infecciosos como o coronavírus. A propagação deste último depende do desenvolvimento da inimizade dentro da espécie e em sua relação com a natureza.

Apenas levando a cabo a inversão, que nos mantém em continuidade com o passado revolucionário e, portanto, com Bordiga, a espécie será capaz de perpetuar seu futuro.

J. Camatte.

Novembro de 2020.