Maio–Junho de 1968: A Revelação

Jacques Camatte

Março de 1977


Primeira edição: Revue Invariance, Série III, 1977.

Fonte: Medium de @miguelarthurbdemoraes.

Fonte para a tradução: libcom.org.

Tradução: Miguel Arthur.

HTML: Lucas Schweppenstette.

Creative Commons


Nota do tradutor

Com muita felicidade, realizei a tradução desse seminal texto de Jacques Camatte sobre, provavelmente, aquele que é o evento mais paradigmático da esquerda revolucionária do pós-Segunda Guerra: Maio de 68. De forma fascinante, Camatte nos dá um panorama das implicações históricas que a insurreição francesa anunciou, tornando evidente a era da dominação real do capital. Em geral, mais do que tudo, o texto demonstra que, no atual momento, qualquer tentativa de empreendimento revolucionário que não leve em conta os acontecimentos de Maio de 68 está fadada à mera reprodução do despotismo do capital e suas formas, ao fracasso. Bom texto!

Nos textos que se seguem, Maio-Junho de 68 é considerado como um momento de ruptura fundamental: a emergência da revolução, mas não a revolução mesma. Esta abordagem envolve definir, demarcar e prever o que será a revolução comunista na fase da dominação real do capital sobre a sociedade; as revoluções proletárias anteriores tiveram lugar na fase de dominação formal.(1) Maio-Junho de 68 é considerado como o prólogo de um vasto drama histórico que teve de conhecer seus atos decisivos muitos anos depois. Os atores principais já não eram os mesmos. Em 1968, quem interviu foram os estudantes e as novas classes médias (todos os assalariados que operam no processo de circulação do capital), foram eles quem tiraram os proletários de sua letargia e os fizeram entrar no palco da história. De agora em diante, o partido de amanhã não será mais um reagrupamento daqueles que são estritamente proletários, mas a expressão de uma unificação mais ampla. Isso nos leva à reflexão sobre a formação de uma imensa classe de seres humanos situados em oposição ao capital porque são escravos assalariados. Simultaneamente, isso envolve esclarecer o fenômeno da profunda proletarização que está afetando a sociedade existente, posto que o proletariado deve negar a si mesmo para levar a cabo a revolução.

Entretanto, a reflexão sobre o processo de unificação do que poderíamos chamar de sujeito revolucionário resultou em evidenciar o fenômeno da raquetização, que nos obrigou a abandonar qualquer prática grupal formal ou informal, mas não postergou a análise de Maio-Junho de 68, reconhecendo assim sua importância.(2)

Maio-Junho de 68 — Uma reafirmação

O estudo histórico do movimento operário, comparando-o com o florescimento revolucionário posterior a Maio de 68, demonstrou que o que se manifestava então era meramente a reafirmação de algo que já havia ocorrido nos anos 20; Isto confirmou a descontinuidade de Maio de 1968, que revelou que não éramos contemporâneos de nossa época.(3) A originalidade desse momento parecia ser, portanto, a readaptação histórica, o que explica as modas selvagens, a difusão vertiginosa das ideias de W. Reich, a reinvidicação da morte da arte e sua realização, as diversas tentativas de criar comunidades, o entusiasmo por uma pedagogia não autoritária (que já havia se manifestado nos anos anteriores), pela agricultura orgânica, a biodinâmica, pela antroposofia, mas também a reafirmação do sagrado, a fascinação pelas ciências ocultas e o desenvolvimento da denominada corrente irracionalista.

Podemos nos dar conta de até que ponto o triunfo do fascismo sob suas diversas formas, o do stalinismo, a devastação da Segunda Guerra Mundial e as inibições engendradas pela Guerra Fria haviam causado um retrocesso difícil de superar e que, no entanto, foi aniquilado em poucos anos. Isso foi o produto da introdução de outros elementos, particularmente a ecologia, incluindo o descobrimento da importância de outros seres vivos e, para alguns, ao menos nos últimos anos, do agonizante problema da superpopulação.

Maio-Junho de 1968 e, sobretudo, os acontecimentos subsequentes trouxeram um novo elemento: a manifestação de um ponto morto, de um impasse. A catástrofe permitiu, de fato, evitar os seguintes problemas: existe um sujeito revolucionário? O proletariado ainda tem uma missão histórica a cumprir? A revolução será ou não será classista? Pode ainda haver uma revolução?

O disfarce era ainda mais completo porque o movimento fascista, auxiliado pelo stalinismo, foi a realização da dominação real do capital sobre a sociedade. O que ainda não havia sido tentado ou vivido poderia então parecer uma saída; assim como de um ponto de vista superficial, a luta contra o fascismo poderia também aparecer como uma solução: pode aparentar ser o prelúdio da revolução.

Nós, entretanto, concebemos tudo o que se manifestou depois de Maio de 1968 sob o prisma do que já se havia desenvolvido na década de 1920, chegando na conclusão de que, naquele tempo, vários problemas foram deixados de lado e que o mesmo não deve acontecer hoje em dia se não quisermos que seja em nossa época que se realize o suicídio da espécie.

Partida deste mundo

É preciso admitir que em Maio-Junho de 1968, e sobretudo a partir da agitação secundária de 1973, o ponto morto em que nos encontramos se manifestou claramente visível: quanto mais lutamos contra o capital, mais forte ele volta. Em consequência, os anos 1975-1976 marcaram um retrocesso. Repetidamente, a retórica revolucionária esquerdista conseguiu se recuperar dos acontecimentos no Chile, na Grécia, da greve de Lip(4) e da revolução em Portugal. Contudo, nesse último caso, o impasse se manifestou claramente visível mais uma vez. Os homens e mulheres devem tomar consciência desse beco sem saída para decidirem abandonar as velhas representações e finalmente buscarem uma nova dinâmica, uma saída deste mundo.

Vale destacar que 1975 marcou um ponto de inflexão, mas não tão decisivo como se esperava. De fato, a crise se propagou, se instalou profundamente; ao mesmo tempo, no plano político, os Estados Unidos abandonam a península da Indochina, estágio final da expansão do imperialismo estadunidense, mas também da agitação esquerdista. Por outro lado, esta crise, que termina(5) e que nunca chega a ser revolucionária, é a expressão mais óbvia do ponto morto em que se mergulha buscando uma contradição decisiva no coração do capital; contradição que supostamente catapultaria o sujeito potencialmente revolucionário rumo à revolução.

O interesse por esta crise é diferente: desvelar o impasse ao destruir as velhas representações, as velhas certezas, os apegos do passado; pôr os seres em movimento porque suas antigas representações desmoronam e não se pode viver sem nada. Ainda que, atualmente, a maior parte dos seres humanos viva o vazio, a vacuidade (a realização do universal!) que falamos em Escatologia e Ressurreição.(6) O vazio é o complemento da totalidade do capital que o secreta e estrutura. Isso implica que essa crise se resolverá — se não há uma uma percepção generalizada do impasse — de uma forma positiva para o capital, isto é, mediante un fortalecimento de seu despotismo.

Essa percepção generalizada do impasse possui a oportunidade de prevalecer porque os diversos obstáculos para um devir diferente têm sido abolidos: o mito do progresso e do desenvolvimento das forças produtivas, o da URSS como país do comunismo, da China como modelo substituto etc., junto com seus corsários: a necessidade do partido, de uma teoria unitária, global, válida para todos, da transmissão da consciência, da violência revolucionária etc., assim como o mito da ciência neutra e benfeitora dos seres humanos; e que a crise de todas as instituições significa que já não podem ser polos de desvio das forças humanas em revolta, o que deixará o campo livre à manifestação dos diversos seres humanos.

Lutando no coração do capital

Em uma certa medida, os eventos posteriores a Maio de 1968 constituíram a confissão-revelação que Bordiga esperava dos russos e do sistema capitalista mundial. A brecha entre a realidade e aquilo que se afirma tende a desaparecer, no momento atual, porque se tornou cada vez mais claro para todo mundo que, por exemplo, a URSS não tem nada de comunista. Isso é verdade, inclusive, entre os partidos que antes tiveram que defender vigorosamente o comunismo de Moscou. Entretanto, não há uma afirmação da revolução tal como Bordiga a concebia. Em vez disso, isso nos permite compreender até que ponto pode chegar a errância e a perversão dos ideais mais generosos. Permanecer dentro desta análise nos levaria somente a tocar a superfície do fenômeno; o importante é colocar em evidência que lutar no coração da dinâmica do capital só pode nos levar a tais aberrações. Agora, de uma maneira mais ou menos grotesca, com excessos em todas as direções, esta é uma ideia que tende a se impor na atualidade, mesmo que por vezes conduza ao triunfo do derrotismo mais absoluto, isto é, a pensar que a transformação social não seria possível porque os seres humanos sempre necessitarão de um mestre.

A irrupção de Maio-Junho de 1968 sacudiu profundamente — em sentido literal — as mentes das pessoas. A tal ponto que, para explicá-la, alguns apelaram ao irracional, a um ressurgimento de um comportamento “primitivo”. Maio de 1968 havia consistido em uma imensa catarse e, em consequência, também em uma festa prodigiosa. Ambos os aspectos não podem ser negados, mas são meramente epifenômenos. Na realidade, a dimensão biológica da revolução foi afirmada. Pessoalmente diria, agora, que foi afirmada a transformação que deve se produzir para que nossa espécie continue vivendo. Com o desenvolvimento do capital — embora o fenômeno estava em marcha muito antes do capital se estabelecer —, os seres humanos são despojados do gesto, da palavra, da imaginação. Maio de 1968 foi a exigência de sua libertação-recuperação. A loucura biológica em que a nossa espécie está se afundando foi descoberta; na medida em que os seres humanos perderam o gesto, posto que já não operam para um “fazer” dado, tornam-se inúteis para a produção material (e até intelectual), estão alienados pela perda da possibilidade concreta de criar e estão presos nessa incapacidade. A partir deste ponto há uma ruptura entre o sistema nervoso (projeção somático-motora e somático-sensível) e seu agente normal, a mão — uma ruptura intolerável que deve ser abolida. Mesmo antes de 1968, especialmente na Suécia, tiveram lugar revoltas e distúrbios reveladores: os jovens foram às ruas, destruindo tudo ao seu caminho, sem nenhuma reinvidicação política, sindical ou de outro tipo. Expressavam o inexpresível: a prisão da loucura e o desejo de se libertarem dela. De onde procede essa loucura? Com Maio-Junho de 1968, suas origens profundas foram reveladas.

A revelação atravessa até mesmo o fenômeno da recuperação que, desde Maio de 1968, adquiriu um amplo alcance. A publicidade compreendeu os desejos profundos dos seres humanos e, posto que ela deve essencialmente utilizar a linguagem do entretenimento, deve conhecer precisamente o terreno em que atua. Os desejos da comunicação, de natureza, de um ritmo mais lento, ao mesmo tempo mais cósmico e mais humano, devem ser desviados para o consumo do capital, seja sob formas e representações materiais para aqueles que possuem capital-dinheiro ou apenas na forma de representações para aqueles que não o possuem.(7)

O marxismo como consciência repressiva

A emergência desses desejos profundos, mesmo que estejam incorporados em representações que permanecem dentro dos marcos do capital, expôs outro componente essencial de nosso mundo: o marxismo como consciência repressiva. Esta é em todas as partes do mundo a força mais efetiva que se opõe ao ardente desejo de viver; o anarquismo, em suas formas individualistas e não-violentas conserva ainda uma certa carga de rebelião. É graças ao marxismo que que o Modo de Produção Capitalista (MPC) foi capaz de efetuar sua transformação em dominação real, de tornar-se universal. De fato, sem ele o MPC não teria sido capaz de penetrar em zonas como as que a URSS domina atualmente, na China ou nos países africanos. Nesse sentido, desempenha o mesmo papel que o cristianismo diante do Império Romano. A verdadeira universalidade daquele império foi de fato alcançada pela religião que, em suas origens, havia jurado sua destruição.

O fenômeno profundo é, como dizíamos em 1968, a busca da Gemeinwesen(8) e, poderíamos dizer agora, a busca do ser e da vida imediata por meio da recuperação do gesto, da fala e da imaginação; Isto pode se percebe na atração que exerce o artesanato em uma multidão de jovens (recuperados pelo capital, como já indicamos) e nas diversas tentativas de criação de comunidades.(9) Claro que isso muitas vezes assume aspectos débeis. Contudo, a crítica mais severa — que tem razão quanto ao imediato — é incapaz de intuir a aspiração profunda dos seres; esquecem que não é possível eliminar em um só golpe e imediatamente os fenômenos da moda e do seguidismo.

A afirmação dessa aspiração profunda, assim como sua compreensão, são dificultadas por uma percepção de mundo que foi pervertida pelo fato dos seres humanos terem se convertido em usuários do capital. Estão em um mundo onde já não há nenhum valor de uso ou valor de troca. Eles mesmos são um modo de ser do capital. Como o capital, são uma grandeza dada que deve aumentar. Já não podemos dizer “realizam seu valor” na medida em que ainda nos remete à esfera do valor. Isto se manifesta de forma contundente no mecanismo de perversão da revolta. Consiste em ir cada vez mais para a esquerda. Cada pessoa gostaria de estar mais à esquerda, mais ao extremo de quem acaba de ser considerado como tal porque introduziu algo no chamado debate revolucionário; dessa forma, os revolucionários já não têm tempo para estruturar sua revolta, porque imediatamente se descobre, com escárnio, que carece de fundamento, de verdade, que há algo mais revolucionário que aquilo que acabam de afirmar. A teoria revolucionária se transforma, como o prazer, em algo que jamais é alcançado. Mergulhamos no indefinido e na evanescência.

As possibilidades são transformadas

Por outro lado, na atualidade, não só a vida se transforma em conhecimento (Nietzsche), mas o possível se transforma em objeto de saber. Vários pesquisadores revolucionários buscam novas ideias e, assim que percebem o menor choque, o estremecimento de algo incomum, a afirmação da menor ideia original, eles a agarram, a circunscrevem, a teorizam, extrapolam tudo aquilo que possa conter. Ou serve para revisar sua representação anterior. Em todos os casos, trata-se de improvisar alguma coisa que funciona e lançá-la no mercado. O autor da intuição ou da ação descobre que seu impulso é vulgarizado, capitalizado. Não podem evitar de se sentirem enojados pelo que fizeram e até por si mesmos. As possibilidades são transformadas em representações, e mesmo quando os homens e as mulheres são capazes de realizar algo, e portanto viver, possuem um sentimento de déjà-vu, o sentimento de que algo é banal, não essencial, que é algo que não vale a pena. Daí o desânimo que se torna ainda mais agudo quando se dão conta de que com os diversos elementos teóricos, com as diferentes possibilidades de externalização que nos são apresentadas, há infinitas possibilidades.

Somente ao alcançar outra dinâmica, ao adotar um marco de referência distinto ao capital, é possível evitar toda essa perversão-destruição. E quando os fenômenos catastróficos inerentes ao desenvolvimento de nosso mundo ocorrerem, os obstáculos abolidos serão reconhecidos como tais e os homens e mulheres se verão obrigados a terem que escolher: permanecer na comunidade-capital ou abandoná-la. Se compreenderá então que foi com Maio-Junho de 1968 que esta alternativa foi anunciada.

É devido à ruptura que teve lugar que podemos emergir de um passado mítico, de um futuro idealizado, indefinidamente projetado, aparentemente próximo, mas sempre relegado ao futuro; que podemos tentar todas as coordenadas do tempo, encontrar o espaço e adotar o comportamento que unifica o todo em uma vida, desde agora, fora daquela do capital.

Jacques Camatte.

Março de 1977.