Nota do tradutor
Em mais um de seus textos seminais, Camatte, junto de Gianni Collu, destrincham sobre a transição da dominação (subsunção) formal para a dominação real do capital, pontuando suas implicações para o movimento revolucionário que busca a destruição do capital e afirmação da Gemeinwesen. A partir disso, estabelece-se um paradigma essencial entre o velho movimento operário e suas tendências (sejam bolchevistas ou conselhistas) e aquele que se constitui pós-1945, postulando a integração do trabalho ao capital e a impossibilidade da revolução como afirmação de classe — fato fundador da Teoria da Comunização. Enfim, outro escrito fundamental e desafiador de Jacques Camatte para ser lido, estudado e absorvido na práxis revolucionária. Bom texto!
Da dominação formal à dominação real do capital
1
A crítica da sociedade do capital existente deve tomar como ponto de partida a reafirmação dos conceitos de dominação formal e dominação real como duas fases históricas do desenvolvimento capitalista. Todas as outras periodizações do processo de autonomização do valor, tais como capitalismo competitivo, monopolista, monopolista de Estado, burocrático etc., abandonam o campo da teoria do proletariado, isto é, a crítica da economia política, assumindo em seu lugar o vocabulário exercido pela ideologia social-democrata ou “leninista” codificada pelo stalinismo.
Toda a fraseologia com que alguns pretendem explicar “novos” fenômenos não fazem nada além de mistificar o advento da completa autonomia do valor; isto é, a objetivação da quantidade abstrata em processo na comunidade concreta.
O capital, como um modo de produção social, alcança sua dominação real quando consegue substituir todas as premissas sociais e naturais anteriores com suas próprias formas particulares de organização, que agora mediam a submissão de toda vida física e social às necessidades reais de valorização. A essência da Gemeinschaft do capital é a organização.
A política, como instrumento mediador do despotismo do capital, desaparece na fase de dominação real do capital. Depois de ter sido usada plenamente no período de dominação formal, torna-se prescindível quando o capital, devendo ser total, consegue organizar rigidamente a vida e a experiência de seus subordinados. O Estado, como gerente inflexível e autoritário da expansão de formas equivalentes na relação social (Urtext), torna-se um instrumento elástico na esfera dos negócios. Consequentemente, o Estado ou, diretamente, a “política” são menos que nunca o sujeito da economia e, portanto, são menos que nunca os “chefes” do capital. Hoje em dia, mais do que nunca, o capital encontra sua própria força real na inércia do processo que produz e reproduz suas necessidades específicas de valorização como necessidades humanas em geral.
(A derrota do movimento de maio de 68 na França foi a manifestação mais clara deste “poder oculto do capital”).
A economia reduz a política (a velha arte da organização) a um puro e simples epifenômeno de seu próprio processo real. Permite-a sobreviver como um museu de horrores, tal como o parlamento com todas as suas farsas, ou na proliferação rancorosa de grupos “extraparlamentares”, que são todos idênticos como organização formal ou informal, ao mesmo tempo que competem obscenamente na sua verborragia “estratégica”.
Outros instrumentos ideológicos ou de mediação parecem seguir o mesmo destino. Durante o período de dominação formal, estes seguiam tendo uma certa aparência de autonomia (filosofia, arte etc.), como sobrevivência dos tempos anteriores. Toda aparente distinção entre a ideologia e o modo social de produção é agora destruída e, hoje, o valor que se tornou autônomo é sua própria ideologia.
Assim como na transição da mais-valia absoluta para a mais-valia relativa, o capital (em seu movimento constante rumo à expropriação total) quebrou todas as conexões técnicas e sociais do processo de trabalho anteriormente existentes para reunificá-las mais tarde como poderes intelectuais de autovalorização do capital; assim, hoje em dia, à medida que o capital se converte em um poder social total, este propricia a desintegração completa do tecido social e de suas conexões mentais com o passado, ao mesmo tempo em que enconraja sua recomposição em uma unidade delirante, organizada pelas metamorfoses cíclicas cada vez mais aceleradas do capital; processo em que tudo se reduz a ingredientes degradados da extraordinária síntese do valor que é a autovalorização.
A dominação real do capital também significa que ao proletariado não só lhe são expropriados seu tempo de vida e sua capacidade mental, mas que o tempo da circulação agora prevalece sobre o da produção (a nível espacial). A sociedade do capital cria uma população “improdutiva” em grande escala, cria sua própria “vida” em função de sua própria necessidade: fixá-las na esfera da circulação e nas metamorfoses da mais-valia acumulada.
O ciclo se fecha em uma identidade: todo o tempo dos homens é tempo socialmente necessário para a criação e circulação/realização de mais-valor. Tudo pode ser medido pelos ponteiros do relógio.
“O tempo é tudo, o homem não é nada; ele é, no máximo, a carcaça do tempo” (Marx, A Miséria da Filosofia)
A quantidade abstrata em processo (valor) se constrói como o modo social de produção e de vida (comunidade material).
As teorias do movimento operário se ocuparam deste processo só para mistificá-lo. Para dar apenas um exemplo: a absoluta subordinação de um Estado e sua inserção no processo de valorização como um de seus momentos particulares é apresentada como seu contrário, ou seja, como um “capitalismo de Estado”, na qual o capital não aparece como um modo social de produção e de vida, mas como um modo de gestão burocrático, democrático etc.
Uma vez chegadas a esse ponto de vista, concebem a revolução não como a abolição de uma “existência” e a afirmação de outra, mas como um processo político estatista em que a “organização” aparece como o problema principal ou, ainda mais, como a panaceia que resolve tudo. Aqui encontramos outra vez a concepção degradada da revolução, que já não é mais vista como uma relação mundial de poder entre o proletariado e o capital, mas imediatamente como uma questão de “formas” ou “modelos” de organização: a passagem é muito curta.
Não se pode explicar de outra forma a preponderância de tais categorias no movimento operário (capitalismo de Estado, burocrático etc.), categorias só colocam entre parênteses o ser real do capital, afirmando a centralidade de um de seus epifenômenos, em que é teorizado como sua fase superior, sua última fase etc.
Pelo contrário, há que permanecer no terreno da crítica da economia política (crítica da existência do capital e afirmação do comunismo) para entender a totalidade da vida social no período de sua redução a um simples meio do processo de desenvolvimento das forças produtivas autonomizadas.
A sociedade do capital, de fato, é apresentada em nível superficial como se estivesse dividida em campos aparentemente opostos, o que faz surgirem descrições separadas dos mesmos (sociologia, economia, psicologia etc.). A existência de todos esses “campos de pesquisa” só explica de maneira mistificada a realidade unificada e absoluta criada pelo valor, o sacro moderno, característico de um processo que vai da decomposição de uma realidade orgânica preexistente até a fixação de diversos elementos que são logo recomposto e postos em uso pela crescente inércia social, criada pelo opaco e despótico movimento das forças produtivas, que crescem além de si mesmas e que necessitam da representação do verdadeiro movimento de coesão da totalidade social em seu conjunto.
É por isso que toda “teoria crítica” que pretenda fundar-se na ênfase em um ou outro setor termina se reduzindo a não ter nem sujeito e nem objeto.
Carece de sujeito na medida em que o valor como objeto abstrato em um ser material (Grundrisse) evita toda determinação imediata. Quanto a essa imperceptibilidade das tendências reais do capital na época de sua dominação absoluta, deve-se dizer que as manifestações mais óbvias e ofuscantes de fetichismo é mistificação das relações sociais produzidas por tal desenvolvimento nos são fornecidas pelo conceito — aceitado por todas as teorias “inovadoras”, sejam essas críticas ou apologética — de “sociedade industrial” e seu apêndice: a “sociedade de consumo”.
Esse conceito, que expressa uma mistificação perpetrada pelo capital nas relações sociais, torna-se possível à medida que a valorização (e as necessidades vitais do capital) progressivamente domina o processo de trabalho. Marx definiu o processo de trabalho como a troca orgânica entre o homem e a natureza, atividade intencional direcionada à criação de valores de uso.
O capital tende a apresentar suas próprias necessidades gerais como exclusivas e imediatamente idênticas às da humanidade, ao ponto de criar uma identidade cada vez maior entre esses dois processos. De fato, dada a dominação real de sua própria existência, essa mistificação parece estar baseada racionalmente no fato de que a sociabilidade, a convivialidade, os costumes, a linguagem, os desejos, as necessidades, em um palavra, o ser social dos seres humanos, foi transformado em nada menos que exigências da valorização do capital, em componentes internos de sua própria reprodução ampliada.
Se o capital domina tudo a ponto de poder se identificar com o ser social, pareceria, nesse sentido, como se houvesse desaparecido.
Este é o maior fetichismo já produzido pela troca de valor na história de sua própria autonomização. É daí que pode surgir uma categoria “neutra” como a de sociedade industrial. Desse modo, pode desaparecer (e desaparece) toda possível distinção entre o trabalho abstrato que valoriza o capital (o proletariado) ou que permite a existência total de seu ser (as classes médias) e a atividade humana útil tal como se desenvolveu em tempos pré-capitalistas.
2
Afirmamos anteriormente que o capital pode ter sucesso em se apresentar como um sistema “racional”, ou pelo menos inevitável. Agora precisamos ver como ele tenta atrasar ou neutralizar a revolta do proletariado em sua imediatez, sendo esta a que constitui sempre sua potencial negação.
Dada a natureza minoritária do proletariado nas metrópoles do capital, o capital opera isolando-o e confinando-o a um gueto onde a violência proletária é contida.
Deve-se dizer que a existência do proletariado, quando se manifesta cono classe, apresenta um aspecto imediatamente destrutivo, como negação positiva da comunidade material e de todas as formas de organização. Tal é a afirmação concreta do comunismo e a realização de sua teoria.
Podemos ver essa comunidade de ação não preestabelecida nas ações do proletariado negro dos EUA. Ela foi constituída com base na necessidade vital de transbordar e celebrar, e na consciência imediata da identidade de objetivos: unificação, em uma palavra, do movimento real da classe.
Em consequência, apoiamos a produção dessas condições que Marx, na época da formação da Associação Internacional dos Trabalhadores, já havia descrito como momentos cruciais na formação do partido comunista mundial, como produto histórico necessário das contradições da sociedade do capital.
O momento mais importante na manifestação prática do comunismo é o transbordamento da democracia, isto é, a recusa dos proletários, quando elevam suas necessidades materiais ao mais alto nível, a aceitar qualquer separação entre decisão e ação, entre elas a separação entre ser e pensamento sobra a qual, no passado, se edificou a possibilidade de uma “liderança política” baseada nos mecanismos da democracia direta ou indireta (sovietes-conselhos ou centralismo democrático); ou, mais genericamente, no qual se baseia o mecanismo de representação democrática-despótica como a velha arte de organizar a sociedade: a política. Se a dominação real é apenas a realização prática-material dos pressupostos religiosos da alienação, a revolução só pode começar com a “realização da filosofia” no sentido do fim de toda separação, que é a essência não distorcida de tudo o que a revolução afirmou, partindo das metrópoles do “capitalismo mais desenvolvido”.
Este também é o caso na Europa: o movimento de maio de 68 na França, ou qualquer uma das grandes ações do proletariado italiano no norte ou no sul em 69. Aqui, as apressadas e diversas tentativas de “organizar” pareciam condenadas ao fracasso, assim como acontecia nos EUA depois de cada revolta de certa importância. A razão é muito simples: esses grupos querem “conduzir politicamente” o que, na realidade, nada mais é que a completa negação de seu ser e de sua ideologia. Isto é: a forma organizacional da gangue por um lado, e a forma “política” do outro.
Devemos retornar e aplicar à base do tecido social o estudo rigoroso da “externalização da relação do capital sob a forma de capital portador de juros” e o conseguinte desenvolvimento do capital fictício: daí se compreende que os “corpos de administração” na fábrica e no Estado, ou mesmo os “políticos”, têm assumido cada vez mais as formas de máfias/grupúsculos.
Dado este panorama geral, não se pode deixar de observar que, com a constituição do capital como ser material e, em consequência, como comunidade social, a persona tradicional do capitalista (o burguês) desapareceu completamente e que toda “comunidade humana” parcial está condicionada pelo modo de existência da comunidade material. Esse modo de existência é possível porque o capital só é capaz de valorizar a si mesmo, de existir e desenvolver sua essência se uma parte dele, que também participa no movimento geral de autonomização, se relaciona como movimento parcial com a totalidade social e se coloca constantemente em comparação com o equivalente geral, isto é, com o próprio capital. Ele precisa dessa comparação (competição/emulação) na medida em que existe apenas para se diferenciar.
Nesse contexto, surge um tecido social baseado na competição entre “organizações” rivais (gangues).
Agora, os vários “grupúsculos” não são nada mais que gangues concorrentes, que apenas têm em comum a divinização da miséria do proletariado, seu equivalente geral. “Assim como os democratas tornaram a palavra povo (demos) algo sagrado, vocês sacralizaram a palavra proletariado” (Marx).
3
Ao perceber que sua “função” possui uma importância quantitativa cada vez menor no processo da vida total do capital, o proletariado pode se fazer consciente hoje, de forma imediata, da inutilidade de sua escravidão assalariada e, assim, destruir as correntes que o prendem ao capital.
Pode antecipar sua própria negação (que, ao generalizar o trabalho assalariado, já opera sob o reinado do capital de forma mistificada) em toda a realidade social: sua desaparição é a desaparição definitiva das classes.
A separação do proletariado do capital supõe que o mesmo se constitua em “partido”, personificando sua autonegação, o que implica a formação da Gemeinwesen que dominará o conjunto autonomizado, fazendo-o trabalhar para a satisfação das necessidades humanas.
A teoria do partido/teoria do proletariado não pode ser extraída dos denominados textos “políticos” de Marx e Engels por si só, tais como o Manifesto, as resoluções da AIT etc., porque esses textos consideram o proletariado especialmente em sua realidade imediata e se referem sobretudo ao partido formal desse período como um fato dado.
O proletariado ainda tinha que generalizar sua existência até abarcar o conjunto da sociedade, buscando o desenvolvimento do capital e, se tomasse o poder é constituísse a si mesmo como classe dominante (1871, 1905, 1917), ainda tinha que realizar tarefas que, com a contrarrevolução, foram posteriormente assumidas e completadas pelo capital.
Hoje em dia, o partido é possível em seu sentido histórico (ver a carta de Marx a Freiligrath, 1860). Toda organização formal não pode deixar de ser reabsorvida na forma de máfia. O mesmo se aplica a outros grupos, estruturados ou não, que são forçados a trabalhar para reconstruir o partido ou criar conselhos.
O partido histórico só pode ser realizado pelo movimento mundial do proletariado, que se constitui como classe, possibilitando a reunificação da espécie humana, possibilidade que existe desde os tempos da AIT.
Esse movimento só pode ser compreendido mediante o estudo das obras de Marx (O Capital, Grundrisse), onde ele definiu e criticou profundamente o capital como modo de produção e de “vida”. Só a partir daí se pode explicar plenamente o que é o proletariado e seu desenvolvimento em relação ao ser do capital.
Todas as demais explicações da formação do partido, como aquela que se funda na teoria da consciência introduzida de fora, partem da negação implícita da proposição segundo a qual o proletariado realizará a teoria: é dessa forma que eles mantêm a contrarrevolução.